- A senhora é ruim feito o demo e dura como uma pedra! Eu
vou embora pra nunca mais voltar!
- Vai começar a sobrar leite aqui em casa, até que enfim,
esse seu filho parece que tem a fome do mundo no estômago.
A porta de madeira barata e surrada de tanto uso é batida. A
mulher que sai é a quinta ou sexta filha. A sua irmã gêmea ainda permanece. A
mãe correu a espiar o sofrimento de seu fruto. Pela janela, viu uma mulher
pequena e fraca segurando um bebê em um braço e uma mala cheia no outro. Estava
um sol de rachar cuca de sertanejo e a mulher que saía tomava o gosto pela sua
coragem.
A mulher que saiu é sofredora, só chorou quando chegou à
casa do homem que amava. Ter um filho aos dezoito anos é assustador,
principalmente quando se mora em uma favela e sua mãe não aceita imperfeições
de comportamento, mesmo sendo a mulher que mais errara na vida. O pai dessa
criança é honesto... honesto até demais, por isso é pobre e raquítico. A
criança terá um futuro tortuoso, pois o amor dos pais, apesar de ser o maior do
mundo, não bastará para custear as despesas mensais. A fome e a dor de cabeça
os abaterão dali a uns dez anos. Até que eles agüentaram, dirão os conhecidos.
A mulher que saiu merecia um banquete de trinta noites, precisava mesmo engordar,
coitada. Precisava ser bem tratada e receber elogios. Na juventude, teve
coragem para seguir a sua paixão, enquanto os jovens da classe alta arriscavam-se
a seguir uma banda norte-americana.
A mãe chorou, não podia chorar ainda. Restava uma filha para
ela mostrar o seu coração empedrado. A vida é assim mesmo, se as filhas
sobrevivessem à negação de uma mãe, seriam mulheres fortes, raçudas! Aquelas
meninas seriam mulheres de caráter, sempre representando uma austeridade
militar, mas seus corações estavam desfragmentados e jamais seriam completos e
pacíficos.
A desgraça da mãe começou cedo. Não teve a sua castidade
violada como as outras colegas pobres, mas conheceu as dores de se trabalhar
cortando cana aos sete anos. As fibras de seus músculos foram forçadas demais,
causando terríveis dores musculares. Talvez isso provocou o empedramento de seu
coração, pelo possível acúmulo de fibras ao seu redor. O corpo humano é
complexo, leitores, não desconfiem de seus mecanismos de defesa, já que tais
fibras poderiam ter como função apenas a proteção do coração, que viria a
receber fortes impactos ao longo da existência da pobre mulher.
A mãe é um ser muito curioso. Possui uma ligação com seus
frutos que o pai jamais terá. Aliás, o pai saiu para comprar cigarros há
quarenta anos, se alguém souber quando ele volta, que avise. Se for preciso, a
mãe deixa o seu estômago gritar para alimentar os filhos ou sofre um acidente
para protegê-los. Essa mulher era assim, sacrificou-se durante toda a sua
existência para que suas filhas tivessem arte, educação e cultura, mas elas
saíram com coragem demais e jogaram-se de alma na primeira paixão que cruzaram,
que não foi o estudo, mas a alma e o corpo de um homem.
As filhas também não são ruins. São as necessidades que
determinam as ações de uma pessoa. Se a falta de esperanças e a proibição
predominam em um lar, as pessoas tendem a saltar na primeira liberdade que
encontram, é natural. É assim com a fome: se meu estômago dói, ou ainda, os de
meus filhos, pegarei comida alheia e serei julgada como ladra. A sociedade é
mesmo cruel, pois aqueles que julgam não possuem grandes necessidades, restando
às classes desfavorecidas as “grandes” ações. Os jornais são prova disso, os
miseráveis agem e os avantajados sentam e falam.
Durante os aniversários, a família permanecia separada, a
filha dizia que a mãe não lembrou dela e a mãe dizia que as filhas a
esqueceram, quando na verdade todas lembravam-se de todas. É na morte que se
encontram, afinal as lágrimas parecem servir para que as pessoas se abracem e
peçam perdão, que é duradouro enquanto a dor da morte fica presente no
indivíduo, sendo substituído pelo rancor quando a vontade da vida aparece.
E assim essas mulheres viviam, em uma família instável ou
comum, se o comum for a instabilidade. Tornavam-se cada vez mais severas no
tratamento com as outras pessoas e no enfrentamento de seus medos. São as novas
mulheres, que não expõem sentimentos para não serem fracas, pois tem uma
vontade do tamanho do mundo e querem provar a que vieram. Mulheres duras,
mulheres belas e mulheres de intenso caráter, essas sim são as fortes
trabalhadoras que realizam as grandes ações pelas fortes necessidades.